quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

É dentro de nós que o Ano Novo se encontra. Vamos fazer por ganhá-lo!




RECEITA DE ANO NOVO






Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Sophia de Mello Breyner





É uma das escritoras contemporâneas com maior projecção nacional.
Nasceu no Porto em 6 de Novembro de 1919, numa família aristocrática de ascendência dinamarquesa, e faria hoje 95 anos se cá estivesse. Viveu no Porto até aos dez anos e, posteriormente, em Lisboa. Colaborou em revistas literárias: «Cadernos de Poesia» (1940-42), «Árvore» (1951-1958) e «Távola Redonda» (1950-1954).
A sua obra abrange a poesia, o conto, sobretudo infantil, o ensaio e a tradução. No seu mundo poético, o mar, a terra, a casa, a infância e a família ocupam um espaço privilegiado. Teve um papel importante de intervenção social e cívica durante o período antes do 25 de Abril. Posteriormente, foi deputada à Assembleia Constituinte pelo Partido Socialista. Contudo, é como poeta que se destaca: a sua vasta obra é considerada excepcional e, por isso, nunca é demais lembrar a sua poesia.

Sophia de Mello Breyner descreve a sua  Arte Poética num texto lido em 11 de Julho de 1964, no almoço de homenagem promovido pela Sociedade Portuguesa de escritores, por ocasião da entrega do grande Prémio de Poesia, atribuído a Livro Sexto.
«A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros  artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a reconheci intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeo de Souza-Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do amor e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor (...)».
© Instituto Camões, 200

Eis um dos seus poemas:



Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

in Mar Novo (1958)


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

NOITE DA RIA

 Foto da net ( Ria Formosa)

Há formas indistintas que na noite da ria
se movem, silhuetas passando junto à água
um barco mal visível ao candeio
mas não, é só alguém que na vazante
anda na maré baixa transportando
um candeeiro que projecta raios
iguais aos das estrelas, sempre vivas
nas noites do verão; deixo de ver por vezes
essa estrela nas mãos de quem a usa para
paralisar os chocos na areia
sob a água de súbito avistados
rápido corre um barco despertando
a surda ondulação brevemente acabada
as aves só o canto as eleva da água
que durante algum tempo fica a bater nos barcos
sem outro som até que novamente os pios
no rumor do silêncio como sobre
uma sombra refazem o seu ritmo

Gastão Cruz