terça-feira, 29 de março de 2011

Penélope


mais do que um sonho: comoção!

sinto-me tonto, enternecido,

quando, de noite, as minhas mãos

são o teu único vestido.


e recompões com essa veste,

que eu, sem saber, tinha tecido,

todo o pudor que desfizeste

como uma teia sem sentido;

todo o pudor que desfizeste


a meu pedido.


mas nesse manto que desfias,

e que depois voltas a pôr,

eu reconheço os melhores dias

do nosso amor.


David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 21 de março de 2011

Glória ( Primavera)

imagem do google
"Depois do Inverno, morte figurada,
A Primavera,
uma assunção de flores.
A vida Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores."
Miguel Torga






Miguel Torga, diário XIV

quarta-feira, 16 de março de 2011

Paisagem

Extraída do Google


Passavam pelo ar aves repentinas
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde,a terra escura.
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheiros onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
A sua exaltação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo
Cuja voz ,quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 11 de março de 2011

Horizonte

Foto de Cata-vento ( Praia do Barlavento algarvio)

O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.



Fernando Pessoa

domingo, 6 de março de 2011

Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia

Zambujeira do Mar ( foto de Cata-Vento)




Eu ontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.

Chorámos, rimos, cantámos.

Falou-me do seu destino,
Do seu fado...

Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Pôs-se a cantar
Um canto molhado e lindo.

O seu hálito perfuma,
E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim.

Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...

Ele afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...

Ao longe o Sol na agonia
De roxo as águas tingia.

«Voz do mar, misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
- Ó voz moribunda e doce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»


E os poetas a cantar
São ecos da voz do mar!




António Botto