quinta-feira, 3 de novembro de 2011

NOITE DA RIA

 Foto da net ( Ria Formosa)

Há formas indistintas que na noite da ria
se movem, silhuetas passando junto à água
um barco mal visível ao candeio
mas não, é só alguém que na vazante
anda na maré baixa transportando
um candeeiro que projecta raios
iguais aos das estrelas, sempre vivas
nas noites do verão; deixo de ver por vezes
essa estrela nas mãos de quem a usa para
paralisar os chocos na areia
sob a água de súbito avistados
rápido corre um barco despertando
a surda ondulação brevemente acabada
as aves só o canto as eleva da água
que durante algum tempo fica a bater nos barcos
sem outro som até que novamente os pios
no rumor do silêncio como sobre
uma sombra refazem o seu ritmo

Gastão Cruz

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Ode à Esperança



Crepúsculo marinho,
no meio
da minha vida,
as ondas como uvas,
a solidão do céu,
me enches
e desbordas,
todo o mar,
todo o céu,
movimento
e espaço,
os batalhões brancos
da espuma,
a terra alaranjada,
a cintura incendiada
do sol em agonia,
tantos
dons e dons,
aves
que acodem a seus sonhos,
e o mar, o mar,
aroma
suspendido,
coro de sal sonoro,
enquanto
nós,
os homens,
perto da água,
lutando
e esperando
junto ao mar,
esperando.

As ondas dizem para a costa firme:
"Tudo será cumprido".


Pablo Neruda (1904-1973)
in Odas Elementales.

domingo, 4 de setembro de 2011

Os Girassóis do Alvor





Gosto de girassóis e estes do Alvor
são bonitos entre o branco e o rosa
dos aloendros. Hei-de voltar aqui
um dia só para lavar os olhos
nas águas novas desta luz antiga,
demorar nas areias e na espuma
o olhar trabalhado pelo lume.

Eugénio de Andrade




sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As Hespérides são moças algarvias

    Foto Cata-Vento ( Senhora da Rocha- Armação de Pêra)
 
No Garb realça o azul deuses morenos
À doçura dos figos submetidos.
Vieram gregos. Ficaram Sarracenos.
Nardos enfolham seus nomes esquecidos.
 
À noite ordenham luas nos terraços,
Dão leite à sombra. Abrolham os perfumes.
Silêncio. Só de um lírio ouvem-se os passos.
Madruga a pesca, rompe um mar de lumes.
 
Esvoaçam suas túnicas de abelhas
Entre vinhas, seus bêbados recintos;
E quando a amendoeira nas orelhas
Põe flores, deram-lhe os deuses esses brincos.
 
Vem de turbante o sol e toma posse
De corpos, cactos, milhos e vinhedos.
Excita o açúcar na batata-doce
E despe as almas gregas dos penedos.
 
Ouro firme, crepúsculos de cinabre
Senhorio de azul. Balcões mouriscos.
Ferve a prata na pesca. O cheiro abre
No ar quente uma vulva de mariscos.
 
Jardins da Hespéria? Ninfeu de ondas macias,
O mar. As ninfas guardam os pomares.
As Hespérides são moças algarvias
Todas jasmim, da testa aos calcanhares.
 
Garb de praia e pele magia e lendas,
Branco de extasiadas geometrias.
Absorto o tempo. São gregas as calendas
Com pálpebras de mouras gelosias.
 
Laranjas, cal, areia e rocha ardente
Têm sede da luz que dá mais vida.
Índigos deuses. Ardor. Tudo é presente.
Causa clara de beira-mar garrida.
 
 Natália Correia (1923 – 1993)

sábado, 13 de agosto de 2011

Coisas de Tavira






A casa da minha avó.


Repito estas palavras
e as escadas de pedra
enchem-se de luz:
vejo a avó sentada
na sala a costurar.

Já não espera ninguém.

Os filhos estão com ela
e os netos vão a caminho.

Voam pelos terraços
Onde outrora brincavam
roubando amêndoas e figos
postos ali a secar.


Yvette K. Centeno

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Uma Enorme Pétala Que Oscila

                                 A Praia dos Três Irmãos ( Alvor - Portimão)- imagem Google

Não sou turista
mas como tu
estou aqui só de passagem

Olho para ti, verde mar
e penso:
se a alma se revela no ímpeto de um gesto
tu, mar
és um gesto que se desconstrói
uma ponte só para ti mesmo

Tu, mar
és uma enorme pétala que oscila
e eu
antiga Alice audaciosa
mergulho no teu cego arfar
num violento gesto de amar
tremendo de fascínio e medo


Praia dos Três Irmãos, inverno de 2002

Ana Hatherly

sábado, 16 de julho de 2011

Barcos na Ria

                Barcos na Ria Formosa ( Ramalhete) - Google


Os barcos que na ria

traçam rápidas vias

de espuma e o meu dia desafiam

saltam à luz que é musica

aumentando

até quase tornar

impossível abrir os olhos neste dia

que verdadeiramente não parece

meu como noutra idade eu o sentia

O sol dilata e faz subir o céu

desconhecidos

os corpos contra a água

verde e azul agora calma frente à casa

Nenhum barco

já passa há um

silêncio que só o diminuto

murmúrio da maré crescendo molha
Mas outros barcos vêm e recortam-se

velozmente na água que retalham


Gastão Cruz ( Faro 1941)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Algarve

                                             imagem do google


Levo-te emoldurada na retina,
Terra que Portugal sonhou e sonha ainda,
Que imagina depois de conhecer.
Só na retina poderei reter
Um mar que é outro mar,
Um sol que é outro sol,
Gente que é outra gente,
E casas que parecem de repente
Albornozes de pedra.
Magias naturais como a paisagem
Aberta à luz do dia,
Sempre real e sempre uma miragem
Táctil e fugidia...


Miguel Torga


Carvoeiro, 20 de Julho de 1973

terça-feira, 14 de junho de 2011

Ilhas de Santa Maria




Ilha da Barreta ou Deserta ( Cabo de Santa Maria. o ponto mais ao sul de Portugal, e refúgios dos pescadores)




Culatra...Santa Maria...
Tavira...Armona...Barreta...
Cinco dedos na paleta
de água, lodo e sal, a ria.
Cinco meninas de areia,
mãos dadas debaixo de água,
corpos ao sol a boiar,
ancoradas na ideia
de não poderem sem mágoa,
ser só da ria ou do mar.
Cinco versos da cantata
da lua ou do sol romântico.
Cinco farpas de oiro ou prata
num touro azul, o Atlântico.
Cinco lenços acenando
(à noite faróis sorrindo)
a quem do mar vem chegando
ou para o mar vai partindo.

...........................

Leonel Neves ( Faro)

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Cabanas de Tavira




imagens google




O mar faz-se caro:
precisamos de um barco
para chegar a ele
e merecê-lo

e ver
durante a viagem
a doce união da terra com a água
na outra margem:
casas baixas com seus pátios e quintais
onde se calhar se apanham conquilhas
E ao lado a avó alfarrobeira
(chamada em familia de "farrobêra")
numa cadeirinha baixa de tabua
escarapela o milho

Teresa Rita Lopes ( Faro)

domingo, 29 de maio de 2011

Cacela

Cacela Velha



Está desse lado do verão
onde manhã cedo
passam barcos, cercada pela cal.


Das dunas desertas tem a perfeição,
dos pombos o rumor,
da luz a difícil transparência
e o rigor.


Eugénio de Andrade

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Teu Olhar

Imagem do Google





Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,

Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;

Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!

E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!



Florbela Espanca

terça-feira, 3 de maio de 2011

Contemplação

Imagem de cata-vento ( Senhora da Rocha- Algarve)



Mar, seara sem ninhos!

Ave de fantasia, a inspiração

Olha a rama das ondas, e não pousa...

Escrever o quê na movediça lousa

Onde se muda em espuma o giz dos versos?

Voar entre os azuis da inexpressão...

Por caminhos diversos,

Nunca chegar ao fim da imensidão.





Miguel Torga

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Porque será...

Foto de cata-vento ( Algar Seco - Carvoeiro- Algarve)




Porque será que meus olhos tanto necessitam

de ver mar ao longe?

Ou pelo menos a água

de um rio

para aí cheirar a sua raiz


Se calhar foi por tanto apetecer o azul

da água ao longe

que meus olhos são claros

que meus desgostos

se tornaram destemidos e salgados

e têm

o voo a pique das gaivotas

e o grito ácido

dos pássaros marinhos




Teresa Rita Lopes

( Faro 1937)

Afectos

Lisboa, Presença, 2000

segunda-feira, 25 de abril de 2011

sábado, 23 de abril de 2011

Mar Português





Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu"


Fernando Pessoa

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Mar

Imagem do Google
Não cabes no teu nome, búzio aberto,
E transbordas em ondas,
Espumoso como um vinho singular,
Salgado e azul,
Só bebido por náufragos
E nascituros.
Da terra, a olhar-te,
Embebedam-se os olhos
Dos poetas
Mas excedes também os versos do seu canto.
Oceano, oceano, oceano,
Grita do céu uma gaivota inquieta.
Desamparada, a asa do finito
Mede, aterrada, as léguas de infinito...

Miguel Torga, “Mar”, in Diário IX

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Ode ao mar




Água, sal e vontade — a vida!
Azul — a cor do céu e da inocência.
Um lenço a colorir a despedida
Da galera da ausência...

Mar tenebroso!
Mar fechado e rugoso
Sobre um casto jardim adormecido!
Mar de medusas que ninguém semeia,
Criadas com mistério e com areia,
Perfeitas de beleza e de sentido!

Vem a sede da terra e não se acalma!
Vem a força do mundo e não te doma!
Impenitente e funda, a tua alma
Guarda-se no cristal duma redoma.

Guarda-se purificada em leve espuma,
Renda da sua túnica de linho.
Guarda-se aberta em sol, sagrada em bruma,
Sem amor, sem ternura e sem caminho.

O navio do sonho foi ao fundo,
E o capitão, despido, jaz ao leme,
Branco nos ossos descarnados;
Uma alga no peito, a flor do mundo,
Uma fibra de amor que vive e treme
De ouvir segredos vãos, petrificados.

Uma ilusão enfuna e enxuga a vela,
Uma desilusão a rasga e molha;
Morta a magia que pintava a tela,
O mesmo olhar de há pouco já não olha.

Na órbita vazia um cego ouriço
Pica o silêncio leve que perpassa...
Pica o novo feitiço
Que nasce do final de uma desgraça.

Mas nem corais, nem polvos, nem quimeras
Sobem à tona das marés...
O navio encalhado e as suas eras
Lá permanecem a milhentos pés.

Soterrados em verde, negro e vago,
Nenhum sol os aquece.
Habitantes do lago
Do esquecimento, só a sombra os tece...

Ela és tu, anónimo oceano,
Coração ciumento e namorado!
Ela que és tu, arfar viril e plano,
Largo como um abraço descuidado!

Tu, mar fechado, aberto e descoberto
Com bússolas e gritos de gajeiro!
Tu, mar salgado, lírico, coberto
De lágrimas, iodo e nevoeiro!

Miguel Torga

sábado, 2 de abril de 2011

A Visita

Foto de Cata-Vento ( Senhora da Rocha / Armação de Pêra)



Fui ver o mar.

Homem de pólo a pólo, vou

De vez em quando olhá-lo, enraizar

Em água este Marão que sou.


Da penedia triste

Pus-me o olhar aquele fundo

Dentro do qual existe

O coração do mundo.


E vi, horas a fio,

A sua angústia ser

Uma espécie de rio

Que não sabe correr



Miguel Torga

terça-feira, 29 de março de 2011

Penélope


mais do que um sonho: comoção!

sinto-me tonto, enternecido,

quando, de noite, as minhas mãos

são o teu único vestido.


e recompões com essa veste,

que eu, sem saber, tinha tecido,

todo o pudor que desfizeste

como uma teia sem sentido;

todo o pudor que desfizeste


a meu pedido.


mas nesse manto que desfias,

e que depois voltas a pôr,

eu reconheço os melhores dias

do nosso amor.


David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 21 de março de 2011

Glória ( Primavera)

imagem do google
"Depois do Inverno, morte figurada,
A Primavera,
uma assunção de flores.
A vida Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores."
Miguel Torga






Miguel Torga, diário XIV

quarta-feira, 16 de março de 2011

Paisagem

Extraída do Google


Passavam pelo ar aves repentinas
O cheiro da terra era fundo e amargo,
E ao longe as cavalgadas do mar largo
Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde,a terra escura.
Era a carne das árvores elástica e dura,
Eram as gotas de sangue da resina
E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,
Eram as mãos profundas do vento
Era o livre e luminoso chamamento
Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheiros onde o céu poisa,
Era o peso e era a cor de cada coisa,
A sua quietude, secretamente viva,
A sua exaltação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo
Cuja voz ,quando se quebra, sobe,
Era o regresso sem fim e a claridade
Das praias onde a direito o vento corre.


Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 11 de março de 2011

Horizonte

Foto de Cata-vento ( Praia do Barlavento algarvio)

O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.



Fernando Pessoa

domingo, 6 de março de 2011

Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia

Zambujeira do Mar ( foto de Cata-Vento)




Eu ontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.

Chorámos, rimos, cantámos.

Falou-me do seu destino,
Do seu fado...

Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Pôs-se a cantar
Um canto molhado e lindo.

O seu hálito perfuma,
E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim.

Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...

Ele afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...

Ao longe o Sol na agonia
De roxo as águas tingia.

«Voz do mar, misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
- Ó voz moribunda e doce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»


E os poetas a cantar
São ecos da voz do mar!




António Botto

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Em todos os jardins


Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Aurora boreal

Imagem extraída do google





Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.


António Gedeão

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Amor é fogo que arde sem se ver

Imagem tirada do google

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Andava a lua nos céus



Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas

Na minha alcova
Ardiam velas
Em candelabros de bronze

Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho

Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Plácidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.

Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.

Arrastou-me para ele,
E encostado ao meu hombro
Falou-me de um pagem loiro
Que morrera de saudade
À beira-mar, a cantar...

Olhei o céu!

Agora, a lua, fugia,
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombria.

Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento

Vinha longe a madrugada.

Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente
Bebia vinha..., até cair.



António Botto

domingo, 30 de janeiro de 2011

Desperta


Desperta
desperta-me
de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

é rede a tua língua
em sua teia
é vicio as palavras
com que falas

a trégua
a entrega
o disfarce

e lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Espólio de Sophia de Mello Breyner na Biblioteca Nacional



O espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen será hoje oficialmente doado pela família da escritora à Biblioteca Nacional, em Lisboa.
Maria Andresen, filha da poeta, descreveu o espólio, dizendo que são cartas, cadernos com alguns dos primeiros esboços de poemas, agendas, diários, desenhos e recortes de jornais.
O material esteve guardado no Centro Nacional de Cultura, onde foi analisado pela filha de Sophia e Manuela Vasconcelos.
Depois do acto oficial de doação - uma vez que o material está na Biblioteca desde Novembro - será inaugurada uma exposição com material do espólio, intitulada «Sophia de Mello Breyner Andresen - Uma Vida de Poeta».


Excerto de um texto recentemente recuperado:




"Comecei a escrever numa noite de Primavera, uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter – nem podia desfazer-me em noite, fundir-me na noite.
No gume da perfeição, no imenso halo de luz azul e transparente, no rouco da treva, na quasi palavra de murmúrio da brisa entre as folhas, no íman da lua, no insondável perfume das rosas, havia algo de pungente, algo de alarme.

Como sempre a noite de vento leste misturava extasi e pânico."

O poema referido está intitulado «Primeira noite de Verão». No fim da folha, à direita, está a indicação «Porto, 9-V-1934».




O poema


O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 23 de janeiro de 2011

Há-de flutuar uma cidade



há-de flutuar uma cidade
no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

As palavras



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade


Hoje, 19 de Janeiro, Eugénio de Andrade faria 88 anos.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Bernardo de Passos, Poeta da Minha Terra

Fotografia tirada de http://tochaflorida.blogspot.com/
Busto do poeta no Largo de S.Sebastião ( S. Brás de Alportel)

Tão triste eu ando já, e descontente,
Morre o pobre e nem caixão
Vai no esquife, que desgraça!
Para o cemitério passa
Sem padre nem sacristão!...
Quem fará esta excepção?...
Se é Deus que rege os destinos
Dos grandes e pequeninos,
E todos são filhos seus...
P'ra desmentir esse Deus,
Morre o rico, dobram sinos.
Diz, padre, que leis são essas
Que servem p'ra ti somente...
Tu confessas toda a gente
E à gente não te confessas...
Diz por que tanto te interessas
Nesses segredos que encobres,
Porque é que não te descobres
Nos jornais ou num sermão,
Dizendo porque razão
Morre o pobre e não há dobres?
Só os ricos são gerados,
Dessa Virgem, desse Deus?...
Só eles são filhos seus
E os pobres são enteados?...
Padre, tu só tens cuidados
Com os ricos, teus compadres,
Que deixam ir as comadres
Esmolinhas oferecer
A Deus, sem ninguém saber...
Que Deus é esse dos Padres?...
Qual é o Deus que autoriza,
Ao rico, mil esplendores?
E aos pobres trabalhadores,
Nem pão, nem lar, nem camisa?...
Manda, p'ra quem não precisa,
O oiro, a prata e os cobres,
Palácios, honras de nobres!...
E eu, triste farrapo humano,
Julgo esse Deus um tirano,
Que não faz caso dos pobres




BERNARDO DE PASSOS



Bernardo de Passos nasceu a 29 de Outubro de 1876 em S. Brás de Alportel, vila da beira-serra do Caldeirão, localizada a cerca de dezasseis quilómetros a norte da capital algarvia, e morreu em Faro, a 2 de Junho de 1930. Filho de jornalista, republicano desde a infância, assim se pode dizer, como também, do mesmo modo, se pode afirmar que foi poeta, quando, por volta dos nove anos, fez os primeiros versos. A obra de Bernardo de Passos, pouco extensa, enquadra-se na poesia lírica. O que o poeta escreveu é reflexo da sua vida interior, o espelho de muita sensibilidade e de uma consciência muito equilibrada.(Google)





quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Início de um ciclo especial



Quase nove meses depois, reabro este espaço de que nunca me consegui desligar. Entre mim e o mar há uma ligação umbilical profunda e encerrar o" A Ver O Mar" seria uma amputação de que nem tão cedo me curaria. É certo que muitos momentos houve em que acreditei que iria soçobrar sob os escombros de uma quase hecatombe psicológica que se abateu sobre mim mas aqui estou sã e salva. A minha honorabilidade chegou a ser posta em causa de forma leviana, insensata e irresponsável por quem não me merece credibilidade nem me infunde respeito. Graças a alguns amigos saudavelmente teimosos, fui mantendo algum contacto com a blogosfera e hoje sinto-me preparada para continuar esta aventura, este vício,esta paixão que é fazer verdadeiros amigos a partir de palavras imbuídas de verdade, honestidade, prazer e cujo poder de persuasão me fez voltar a este lugar de ternas recordações. Agora com toda a disponibilidade para essas pessoas.

Bem-hajam!