domingo, 30 de janeiro de 2011

Desperta


Desperta
desperta-me
de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

é rede a tua língua
em sua teia
é vicio as palavras
com que falas

a trégua
a entrega
o disfarce

e lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Espólio de Sophia de Mello Breyner na Biblioteca Nacional



O espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen será hoje oficialmente doado pela família da escritora à Biblioteca Nacional, em Lisboa.
Maria Andresen, filha da poeta, descreveu o espólio, dizendo que são cartas, cadernos com alguns dos primeiros esboços de poemas, agendas, diários, desenhos e recortes de jornais.
O material esteve guardado no Centro Nacional de Cultura, onde foi analisado pela filha de Sophia e Manuela Vasconcelos.
Depois do acto oficial de doação - uma vez que o material está na Biblioteca desde Novembro - será inaugurada uma exposição com material do espólio, intitulada «Sophia de Mello Breyner Andresen - Uma Vida de Poeta».


Excerto de um texto recentemente recuperado:




"Comecei a escrever numa noite de Primavera, uma incrível noite de vento leste e Junho. Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter – nem podia desfazer-me em noite, fundir-me na noite.
No gume da perfeição, no imenso halo de luz azul e transparente, no rouco da treva, na quasi palavra de murmúrio da brisa entre as folhas, no íman da lua, no insondável perfume das rosas, havia algo de pungente, algo de alarme.

Como sempre a noite de vento leste misturava extasi e pânico."

O poema referido está intitulado «Primeira noite de Verão». No fim da folha, à direita, está a indicação «Porto, 9-V-1934».




O poema


O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 23 de janeiro de 2011

Há-de flutuar uma cidade



há-de flutuar uma cidade
no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

As palavras



São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade


Hoje, 19 de Janeiro, Eugénio de Andrade faria 88 anos.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Bernardo de Passos, Poeta da Minha Terra

Fotografia tirada de http://tochaflorida.blogspot.com/
Busto do poeta no Largo de S.Sebastião ( S. Brás de Alportel)

Tão triste eu ando já, e descontente,
Morre o pobre e nem caixão
Vai no esquife, que desgraça!
Para o cemitério passa
Sem padre nem sacristão!...
Quem fará esta excepção?...
Se é Deus que rege os destinos
Dos grandes e pequeninos,
E todos são filhos seus...
P'ra desmentir esse Deus,
Morre o rico, dobram sinos.
Diz, padre, que leis são essas
Que servem p'ra ti somente...
Tu confessas toda a gente
E à gente não te confessas...
Diz por que tanto te interessas
Nesses segredos que encobres,
Porque é que não te descobres
Nos jornais ou num sermão,
Dizendo porque razão
Morre o pobre e não há dobres?
Só os ricos são gerados,
Dessa Virgem, desse Deus?...
Só eles são filhos seus
E os pobres são enteados?...
Padre, tu só tens cuidados
Com os ricos, teus compadres,
Que deixam ir as comadres
Esmolinhas oferecer
A Deus, sem ninguém saber...
Que Deus é esse dos Padres?...
Qual é o Deus que autoriza,
Ao rico, mil esplendores?
E aos pobres trabalhadores,
Nem pão, nem lar, nem camisa?...
Manda, p'ra quem não precisa,
O oiro, a prata e os cobres,
Palácios, honras de nobres!...
E eu, triste farrapo humano,
Julgo esse Deus um tirano,
Que não faz caso dos pobres




BERNARDO DE PASSOS



Bernardo de Passos nasceu a 29 de Outubro de 1876 em S. Brás de Alportel, vila da beira-serra do Caldeirão, localizada a cerca de dezasseis quilómetros a norte da capital algarvia, e morreu em Faro, a 2 de Junho de 1930. Filho de jornalista, republicano desde a infância, assim se pode dizer, como também, do mesmo modo, se pode afirmar que foi poeta, quando, por volta dos nove anos, fez os primeiros versos. A obra de Bernardo de Passos, pouco extensa, enquadra-se na poesia lírica. O que o poeta escreveu é reflexo da sua vida interior, o espelho de muita sensibilidade e de uma consciência muito equilibrada.(Google)





quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Início de um ciclo especial



Quase nove meses depois, reabro este espaço de que nunca me consegui desligar. Entre mim e o mar há uma ligação umbilical profunda e encerrar o" A Ver O Mar" seria uma amputação de que nem tão cedo me curaria. É certo que muitos momentos houve em que acreditei que iria soçobrar sob os escombros de uma quase hecatombe psicológica que se abateu sobre mim mas aqui estou sã e salva. A minha honorabilidade chegou a ser posta em causa de forma leviana, insensata e irresponsável por quem não me merece credibilidade nem me infunde respeito. Graças a alguns amigos saudavelmente teimosos, fui mantendo algum contacto com a blogosfera e hoje sinto-me preparada para continuar esta aventura, este vício,esta paixão que é fazer verdadeiros amigos a partir de palavras imbuídas de verdade, honestidade, prazer e cujo poder de persuasão me fez voltar a este lugar de ternas recordações. Agora com toda a disponibilidade para essas pessoas.

Bem-hajam!